"Somente nos relatórios de Marco Polo, Kublai Khan conseguia discernir, através das muralhas e das torres destinadas a desmoronar, a filigrana de um desenho tão fino a ponto de evitar as mordidas dos cupins"
Ítalo Calvino, As cidades invisiveis

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

As Cidades e o Caos 2: Una

A cidade de Una, tal como existe hoje, nasceu, dizem os mais sábios, após 100 anos de conflitos entre duas castas. Começou da seguinte forma: dois grupos de homens, vindos de direções diferentes, encontraram-se no mesmo local. Um dos grupos, formado por negociantes, cercou uma porção de terra e disse: "é nosso". O outro grupo, formado por homens letrados, construiu uma cerca maior, que englobava o círculo original e disse: "é nosso". O enfrentamento desses grupos, ao longo dos séculos, estabeleceu a morfologia da cidade: esta consiste em dezenas de círculos perfeitamente concêntricos, estruturados simetricamente, atravessados por pontes, vias expressas e passarelas, que formam um desenho complexo, porém perfeitamente ordenado, tendo como ponto de partida a cerca inicial. O conflito acabou quando a cidade atingiu o limite de sua expansão, não sendo mais possível construir além da última muralha, feita pelos letrados. Impossibilitados de prosseguir com o feudo, negociantes e letrados fizeram um acordo, e a cidade de Una passou a ser habitada conjuntamente pelas duas castas, porém em rigorosa separação.

Como resultado desse processo, Una apresenta-se dúbia e desigual no tempo e no espaço: leis severas regem o usufruto da terra, e o rodízio das pontes e passarelas, e é estritamente proibido o transpasse dos círculos, apenas acessíveis aos membros da casta que os construiu. Um negociante pode nascer, crescer, casar-se, envelhecer e morrer sem conhecer as maravilhas que, diz-se, podem ser encontradas nos círculos dos letrados: a torre de bronze e vidro, A Universiade, o Planetário, a Biblioteca, o aquário de golfinhos, o Museu. Por outro lado, nem mesmo o mais velho dos letrados pode dizer como é o Bazar de tendas multicoloridas, a Estação de trem, o Palácio dos Ourives, o Banco, a Feira, a Rua das Tapeçarias. Diz-se que, nos tempos antigos, a punição para o transpasse era a morte, punição abrandada, nos tempos modernos, e substituída pelo exílio. Como resultado, a cidade de Una esvazia-se cada vez mais, à medida que a curiosidade dos jovens os compele a questionar o propósito de sua criação desigual, e transgredir o limite dos círculos nativos. Os que por acaso chegam à Una pela primeira vez são rigorosamente questionados e classificados de acordo com a divisão de castas e, podendo conhecer apenas um dos aspectos da cidade dupla, decidem seguir viagem, decepcionados por terem visto tão pouco.

Recentemente, quando questionados sobre o motivo que os levava a manter a cidade de Una rigorosamente segregada, negociantes e letrados foram unânimes em afirmar: "Se abolirmos as normas e permitirmos que as castas se misturem, a cidade de Una logo será dominada pelo caos que se alastra pelas outras cidades do Império, e deixará de existir. Nós a construímos de forma ordenada, de modo a não permitir nenhum tipo de mistura entre as castas. Na uniformidade está a ordem, na diversidade está o caos." Mas, se me permite dizer, magnânimo imperador, tanto os negociantes quanto os letrados ignoram um fato importantíssimo: que o caos que temem é a substância que dá vida às cidades, a diversidade que desprezam é o combustível da inovação, e a ordem nada mais é do que uma fantasia. Como ignoram essas coisas, seus habitantes não sabem que Una, a cidade dupla condenada a uma meia-vida, está destinada a desaparecer.

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