"Somente nos relatórios de Marco Polo, Kublai Khan conseguia discernir, através das muralhas e das torres destinadas a desmoronar, a filigrana de um desenho tão fino a ponto de evitar as mordidas dos cupins"
Ítalo Calvino, As cidades invisiveis

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

As Cidades Possíveis 2: Alethea

Algumas cidades vivem de seu passado memorável. Ostentam palácios de mármore, teatros de metal e vidro, aquedutos, museus, como se fossem as fotos em preto e branco de um álbum de família, pérolas de um tempo pretérito cheio de louros e grandeza e opulência...

Assim também é Alethea... A cidade viveu um passado rico, quando era então a grande metrópole para onde convergiam os olhares e atenções. A Alethea de então pululava de fábricas, de riqueza e progresso: as mercadorias circulavam, e tudo parecia brilhar com o ouro que brotava, e as damas usavam vestidos de seda riquíssima e os cavalheiros cumprimentavam tirando o chapéu.

Mas esse tempo se foi, e os palácios, teatros, aquedutos e museus, restos de pedra e mármore de um tempo de grandeza, jazem esquecidos: as fábricas fecharam, a cidade que antes era farol hoje vive se amargurando, quando se compara às metrópoles, pobres à sua época de ouro, e que hoje crescem e se inflam e ocupam os espaços vazios... E considerando-se a cidade mais feia, mais suja, mais pobre, mais violenta, presa a esses rótulos, e assombrada pelos feitos de um passado distante, Alethea impede a si mesma de florescer, e se obriga a ser sempre mais no menos.

Longe de seu passado glorioso, a cidade aparece aos olhos de seus habitantes como um receptáculo de tudo o que é ruim, pequeno, feio, medíocre, ou menos, e menos ainda. E enquanto olham para trás e contemplam as glórias perdidas, e olham para longe e contemplam as cidades que espelham o que Alethea poderia ter sido (e não foi), seus habitantes não se dão conta da cidade em que vivem, e não são capazes de enxergar as ruas cinzentas por onde caminham, as torres que se erguem contra o perfil montanhoso, as galerias que cortam sua compacidade de concreto e aço, as antenas dos pára-raios que irrompem dos altos edifícios, as multidões que se abrigam da chuva nos pontos de ônibus, como formigas. Presos ao passado, não se dão conta de que a cidade cresce no presente, ainda que amorfa e desordenadamente, mas cresce, e se concretiza, e quem sabe quando atingirá o céu?

Embora Alethea pareça, à primeira vista, apenas uma coleção de fragmentos de memória, cacos dourados de um passado opulento misturados a peças de latão, cascas de frutas, latas de lixo, folhas secas, de fato a cidade possui dentro de si um vir-a-ser. No entanto, não sabem os seus habitantes que a Alethea futura, esta que aguarda o momento propício para despontar, não é espelho de seu passado ilustre. A Alethea vindoura não guarda semelhança alguma com os fragmentos esparsos de seu ontem, mas brilha de nova acumulando torres compactas de concreto e vidro, galerias, antenas de pára-raios, e ruas cinzentas. Este é o gérmen de uma cidade magnífica, encasulado na cidade dourada, translúcida e sem espessura, que aguarda o momento de sua libertação...

As Cidades Possíveis 1: Lira

Caminhando-se por vários dias em direção ao sul, atravessa-se cadeias de montanhas, lagos congelados, savanas e desertos. Finalmente o viajante atinge Lira, cidade cinza de concreto e pedra. Não que existam muitos atrativos em Lira que compensem a difícil travessia. Na verdade, a cidade é feia e apagada, não possuindo qualquer tipo de beleza ou particularidade que a torne memorável: a praça é um amontoado de bancos de concreto cinza, árvores esparsas, lampiões cobertos de ferrugem... A igreja, com a pintura descascada, é idêntica a milhares de outras igrejas, comum e simplória, como tudo na cidade. Os subúrbios são os mesmos, e os rostos e sotaques idênticos a uma série de rostos e sotaques que se encontra em dezenas de outras cidades. Não, Lira não possui nenhum tipo de singularidade que a qualifique como magnífica. A população, empenhada em acumular dinheiro, trabalha durante todo o dia, até mesmo nos feriados. Não existem dias de descanso, ou dias de lazer, não existem datas comemorativas. Das janelas dos escritórios ouve-se o barulho repetido dos dedos metralhando máquinas de escrever e computadores, e dos telefones tocando... Das janelas das casas, à noite, pode-se ver a luz azulada que vêm do televisor, onde os mesmos programas se repetem dia após dia. Em Lira parece existir uma onda de avareza e egoísmo, de mau-humor e tédio, de ódio e asco, e todos os dias milhares de sonâmbulos percorrem as ruas cinzentas de Lira, da casa para o trabalho, e do trabalho para casa, e da casa para o trabalho de novo, e de novo, e de novo... A cidade parece envolvida por uma constante letargia: em Lira nada cresce, nada brilha, nada germina, é sempre concreto contra concreto, cinza contra cinza...

A razão de descrevê-la é que, mesmo em meio à desinteressante profusão de muros e praças e ruas e casas, às vezes algo de inconfundivelmente lindo e singular parece brotar, em meio à feiúra sempre-cinza de Lira, como uma flor tardia, tímida e pequena, até mesmo pálida, mas ainda assim... É apenas uma sensação, um pressentimento, de que em meio ao cinza dos muros, em meio ao egoísmo e ao mau-humor das pessoas que passam, caras fechadas, fechados em seus sobretudos escuros, existe outra Lira, magnífica, dourada e resplandecente, um amálgama de todas as coisas boas, das virtudes mais elevadas, dos sentimentos mais puros... É um sentimento estranho e inexplicavelmente bom, que aflora quando se vê, em meio à amplitude de torres de aço e vidro, um pássaro azul voando livre contra o céu cinzento, ou um resiliente raio de sol furando a espessa camada de fumaça que envolve a atmosfera, ou um cão feliz roendo um pedaço de pão encontrado no lixo, ou ainda quando se vê um grito de liberdade e revolução escrito em vermelho nos muros de pedra.

Por isso, quando ouvir notícias de Lira, lembre-se, desavisado viajante, não da cidade feia e comum, de pedra, concreto, cinza e tédio, mas da Lira de flores, pássaros, raios de sol e gritos de liberdade. Quando pensar em Lira, não pense na cidade real, que se espalha sobre o solo arenoso, mas na cidade possível, uma flor pálida que brota no fundo da mente humana, mas cresce e cresce e cresce, e se expande, e se dilata...

As Cidades e os Sonhos 2: Veneza

Sonho com muitas cidades. Cidades grandes e pequenas, reais e imaginárias, cidades belas e feias, cidades de pedra ou cidades leves, de “espessura opaca e fictícia”. As cidades com que sonho fazem-se a si mesmas, reúnem-se em um colar como contas de âmbar, cidades inumeráveis, cada qual com sua particularidade. Entretanto, de todas as cidades sonhadas, belas ou feias, brilhantes ou caóticas, ilustres ou desconhecidas, nenhuma jamais conseguiu me encantar tanto quanto uma pequena cidade aquática chamada Veneza. Os canais de Veneza canalizam meus desejos e fantasias, atraem meus olhares, prendem minha atenção, tiram-me o fôlego, e por mais que eu tente é impossível escapar desse encanto... Por mais que meus desejos me levem a outras cidades, por mais que sonhe com a delirante Nova York, com a imperiosa Roma, com a velha Londres, com a sedutora Paris, quando estou feliz e desatento, quando respiro a brisa do começo de primavera e o ar traz o aroma de frutas maduras, quando fecho os olhos em meio ao barulho, à fumaça, à fuligem e à feiúra, e por um momento estou em paz, sinto-me imediatamente em Veneza, caminhando pelas pedras lodosas de Veneza, ou deslizando de gôndola pelos canais de Veneza, ou observando os canais debruçado sobre os balcões dos palácios de Veneza, e não importa onde eu realmente esteja, não importam o barulho, a fumaça, a fuligem, a feiúra, os assaltos, as fofocas, não me importa nada, porque naquele momento, olhos fechados e coração em calma, estou em Veneza, e tudo o que vejo, ouço, sinto e respiro é Veneza...

Do lado de fora das minhas pálpebras ainda existem o barulho, a fuligem, e a feiúra, mas com os olhos fechados, nada parece mais real do que residir no encanto de Veneza. Por mais estranho e impossível que pareça, espero ainda pelo dia em que se produzirá o fenômeno inverso. Por isso, continuo a fechar minhas pálpebras em meio à fuligem e à feiúra, em meio ao barulho e à náusea, aguardando sempre pelo dia em que, ao abrir os olhos, a realidade me trará Veneza.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

As Cidades e os Sonhos 1: Paris


Paris, cidade luz, sempre foi para mim uma cidade dos sonhos, com seus cafés, suas largas avenidas, suas ruelas estreitas, suas pontes, seus jardins, suas fontes, a grande torre de ferro, os suntuosos palácios dos reis, a pirâmide de vidro, a fortaleza convertida em prisão, uma praça em uma ilha, a grande catedral com sua abóbada de pedra, de onde monstros também de pedra, observam as pessoas com seu semblante ameaçador... A atmosfera está permeada por acontecimentos da memória de Paris, e a cidade faz questão de exibir seu passado, seja nas fachadas dos palácios e catedrais, nos museus, nas estátuas, nas placas comemorativas ou nos monumentos de guerra.

Meus olhos passeiam por Paris e surpreendem seus personagens. Em uma calçada há um pintor dando cores às águas do Rio Senna, enquanto outro pintor registra os rostos de Paris, as faces com que a cidade se mostra para o mundo: nesse momento ele se concentra em um café, onde um casal de namorados se olha apaixonadamente nos olhos, porque, nesse momento, nesse lugar, as palavras são inúteis. Do outro lado da rua uma moça passa com um manhoso cachorrinho em uma coleira, ouvindo com olhar perdido a canção que um velho músico toca no realejo, sem prestar atenção ao moleque que, ao seu lado, vende flores, enquanto uma cigana morena, com sua longa saia rodada e grandes argolas nas orelhas, lê a sorte dos passantes e prevê fortuna para uns, amor para outros, viagens, nascimentos, e mudanças.

Basta fechar os olhos e penso estar percorrendo as ruas de Paris, explorando suas perspectivas, como o amante que explora o corpo do ser amado, roubando-lhe o segredo como quem rouba um beijo. É tarde, o céu começa a escurecer. Agora todas as suas luzes estão acesas, e a cidade ganha o aspecto de céu estrelado... A noite cai também nos corações de Paris: a lua é testemunha fiel das confidências dos namorados nos bancos das praças e, basta chegar a madrugada e logo os protagonistas da cidade noturna surgem, ocupando as ruas, praças e bordéis: os libertinos, os bêbados, as meretrizes, os amantes que se entregam ao último beijo antes de partir...

Penso em todas essas coisas quando falo em Paris. Evoco sempre essas mesmas imagens, metáforas, discursos e perspectivas. Não sei dizer que tipo de encanto, ou feitiço, ou magia é essa que envolve Paris, e me transporta para a cidade em todos os meus sonhos, onde eu me embriago de fantasias enquanto procuro desvendar seu mistério. Talvez Paris não seja exatamente como imaginei. Talvez a cidade idealizada não corresponda à verdadeira Paris, mas sim a uma Paris de outra época ou de outro lugar; ou talvez a cidade de meus sonhos seja a verdadeira Paris, e a outra uma cidade falsa, uma usurpadora. Não sei o que acontecerá quando eu encontrar a verdadeira Paris; às vezes tenho medo de que, indo até lá e vendo-a tal como ela é realmente, o encanto que a cidade exerce sobre mim se desfaça, e ela deixe de ser aquela que construí, ponto por ponto, em meus sonhos, e a cidade sonhada desapareça, como a poeira soprada pelo vento.

As Cidades Inexistentes 1: Palmyra


A cidade de Palmyra foi, ontem, uma cidade em ascensão: Palmyra das fábricas, Palmyra das fazendas, com suas casas pequenas, mas felizes, sua praça com girassóis no jardim, suas ruas tranquilas, a estação de trem. Passa um leiteiro com sua carroça, dirigindo olhares licenciosos à moça namoradeira e sonhadora na janela; do outro lado da rua a velha fofoqueira, sentada em sua varanda entre tricôs e fuxicos, observa tudo atentamente; uma moça bonita com sua sombrinha florida caminha em direção à Igreja, onde dobram os sinos chamando os fiéis para a missa; o barbeiro em seu salão conversa com seus clientes e sorri para as senhoras que passam, enquanto o fotógrafo, na loja ao lado, debruça-se sobre seus papéis e instantâneas, com suas grandes lentes de óculos de aro de tartaruga; na praça há os velhos que vêem, com olhos de menino, a juventude passar em um menino que passa e sorri.

Hoje retorno à Palmyra e não mais a reconheço. A cidade continua lá, mas agora me é estranha: as grandes fábricas faliram; prédios solitários e soturnos se amontoam onde antes havia algumas pequenas casas felizes; o coreto da praça perdeu seu telhado e flores medíocres substituem os girassóis nos jardins. A cidade agora ostenta o nome de um de seus filhos ilustres: de uma forma ou de outra, deixou de ser Palmyra.

A Palmyra das fábricas e fazendas pertence agora ao mundo dos sonhos e recordações; ainda é possível visitá-la, mas com os olhos voltados para o passado. Suas velhas personagens, no entanto, ainda permanecem na Palmyra usurpadora, com os mesmos rostos, olhares, gestos, palavras e sorrisos, representando os mesmos papéis: o leiteiro, a namoradeira, a fofoqueira, a moça, a missa, o barbeiro, o fotógrafo, os velhos, a criança que passa e sorri... Remanescentes sem cor e sem forma de uma cidade extinta e sem matéria

Sobre as novas Cidades Invisíveis...

As cidades aqui relatadas existem apenas na imaginação da autora, em seus sonhos, devaneios, visões e fantasias...
Qualquer semelhança com fatos, cidades e pessoas reais é mera licença poética!