"Somente nos relatórios de Marco Polo, Kublai Khan conseguia discernir, através das muralhas e das torres destinadas a desmoronar, a filigrana de um desenho tão fino a ponto de evitar as mordidas dos cupins"
Ítalo Calvino, As cidades invisiveis

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

As cidades e o Tempo 1: Heliodora

Atravessa-se lagos, rios e pastos: finalmente o olhar do viajante atinge Heliodora. Não há nada de particular a respeito de Heliodora, magnânimo Kublai: a cidade é pequena, aconchegante, e até dotada de certo encanto bucólico. Tem uns tantos pontos turísticos, e uns tantos feriados em que se comemora o aniversário dos fundadores, os dias de santos, as festas populares. Até aí, nada existe que a diferencie de outras cidades do império. Mas Heliodora possui uma particularidade, que é a de permanecer imutável no tempo e no espaço. Quando os filhos de Heliodora crescem, mudam-se para cidades maiores e mais prósperas, onde trabalham à exaustão para acumular dinheiro. Em certo ponto, sentem a necessidade de casar e ter filhos, e quando isso acontece é preciso cumprir o ritual de retornar à Heliodora para levar os rebentos para serem devidamente analisados e abençoados pelos mais velhos...

E, a despeito de quanto tempo tenha se passado, quando os filhos ausentes retornarem à Heliodora eles a encontrarão da mesma maneira que a deixaram, e a onda de nostalgia que envolve a atmosfera da cidade trará uma série infindável de reminiscências. Em algum ponto, inevitavelmente, irão se perguntar se faz mesmo tanto tempo que deixaram a cidade, e quase se sentirão transportados novamente aos dias de outrora. Então sentir-se-ão felizes por ver que Heliodora ainda é o mesmo lugar, que traz à mente as mesmas memórias, imagens e sensações, como se a própria cidade fosse um pedaço do passado, um passado tão vivo e pulsante que quase se pode guardá-lo no bolso, para se lembrar dele mais tarde. Quando retornarem às suas casas, nas grandes cidades, cidades prósperas, as reminiscências serão substituídas pelas obrigações do presente: o estudo, o trabalho, as contas, e em poucos dias esse passado será esquecido, como se nunca tivesse existido.

Mas então chegará o momento de voltar à Heliodora, e quando isso acontecer as mesmas lembranças estarão lá, à espera e então o passado que a cidade evoca, que está contido em seu presente, novamente irá assediá-los. Há quem diga que Heliodora, cidade que jamais envelhece, irá sobreviver ao colapso de todas as outras cidades do mundo, até que esta finalmente irá se desfazer depois que o tempo houver devorado todo o resto.